sexta-feira, 23 de março de 2012

Eliza Samudio e a Maratona Cultural


Você já viu a reação de um cachorro após longo período sem beber água? O ataque é voraz e pouco criterioso. O mais humanizado dos cães avança em qualquer poça lamacenta para saciar a sede. O mesmo ocorre com aqueles peixes que, em circunstâncias normais, esnobam aquelas lascas de comida periodicamente depositadas na superfície do aquário.

Com os cães que supostamente devoraram Eliza Samudio, a moça que supostamente foi morta a mando do ex-goleiro Bruno, teria ocorrido algo parecido. Mal alimentados, teriam recebido pedaços da bela jovem como banquete e devorado cada parte, desde as carnes mais macias até os ossos mais duros.


Com humanos, não há grande diferença. Temos acesso constante a imagens chocantes da fome assolando diversas partes do mundo, seja por conta de catástrofes naturais ou tragédias sociais. Afinal, o fenômeno da humanidade em si é uma tragédia. Quando a comida não é suficiente para todos, a briga por um pedaço de pão é grande e pouco criteriosa. Selecionar o tempero? Preferências de preparo? Nem pensar! Vale comer o que vier pela frente: seja um belo salmão grelhado ou uma casca, um resto estragado, uma fruta podre. Se, por sorte, surgir um banquete, a ordem é se refestelar: nunca se sabe quando isso ocorrerá novamente.

Estes somos nós na Maratona Cultural de Florianópolis, banquete de cultura oferecido por diversas esferas do poder público, associações, fundações, etc. Você pode conferir a lista de realizadores e apoiadores no rodapé de seu site oficial, muito bem organizado, cujo endereço é www.maratonacultural.com. Para quem nunca participou, basta saber que a fartura e a diversidade de sabores são enormes, com manifestações artístico-culturais diversas reunidas em três dias. Se minha contagem no guia desta edição estiver correta, são 177 apresentações, reunidas em dezenas de espaços importantes da cidade. Em todos os eventos, a entrada é gratuita.

Louvável, não? Claro! Valorizar nossos artistas e dar ao povo acesso a seu trabalho é maravilhoso! Porém o nome do evento é esclarecedor: trata-se de uma maratona. Se você quiser aproveitar 20%, precisa correr, correr muito. Multiplicar-se. Teletransportar-se. E precisa ser nesses três dias! Como um animal faminto, esqueça tudo que está a seu redor, todas as outras dimensões da vida e se dedique à comilança. Afinal, amanhã não terá mais. Preparar o paladar? Nada disso! Coma sua ração de cultura, cachorro, pois será só este banquete. Em breve, voltará a ser privilégio de quem pode pagar ingressos caros.

Imaginem essas apresentações distribuídas ao longo do ano, em finais de semana. Que maravilha! Cada uma delas degustada em todos os seus temperos pelo público, que prepararia seu espírito para cada refeição de cultura. Os artistas reverenciados com reações plenas, um aplauso profundo em vez de uma saudação protocolar antes dos passos apressados rumo à a próxima atração a ser devorada. Não precisaríamos de uma corrida atropelada atrás da cultura, pois dela não estaríamos mais famintos. Seríamos a Cidade da Cultura!

A Florianópolis dos meus sonhos não promove sua cultura somente em uma vitrine de três dias, um evento de grande dimensão para ser percebido pelo eleitorado. Em vez de fazer de seus cidadãos os cães famintos do goleiro, os torna seletos degustadores dos valores culturais e da produção artística de sua gente.