sábado, 23 de abril de 2011

Samba para São Jorge


Fico impressionado com a quantidade de devotos instantâneos que surgem em dias dedicados a santos muito famosos. Algumas declarações "fervorosas" de muitos que não têm imagem alguma do santo e talvez nunca rezaram para ele parecem a mais perfeita tradução do neologismo fake. Em Florianópolis, o Senhor dos Passos é o maior popstar da ilha. Por isso tudo, esclareço: não sou devoto de São Jorge.

Há algumas semanas, fui comer um X-Egg e um telão passava um DVD de algum sambista famoso com a participação de toda a sua panela. Logo tocou uma música - não citarei porque não lembro - que falava de várias entidades religiosas, inclusive Jorge/Ogum. Era muito ruim. Que fique claro: muito ruim mesmo, tanto pelo meu gosto pessoal quanto por questões técnicas básicas. Pelo mise-en-scène, era uma canção mais querida que as anteriores. E muito ruim, como vários sambas com temáticas similares que passam por grandes obras devido ao apelo à fé dos sambistas. Em samba-enredo, há uma mística que impede a crítica a "sambas afro". Só em 2011, lembro de pelo menos dois muito ruins.

Em 2007, a Império da Tijuca, escola do Grupo de Acesso A carioca, realizou um dos melhores desfiles de sua bela história com o enredo O intrépido santo guerreiro, que para muitos merecia melhor sorte que um insatisfatório 5º lugar. A escolha do tema é ousada por não se limitar a tentar comover os fiéis a São Jorge. Falar do "santo guerreiro" por uma vertente biográfica, abordando também as diferentes leituras e manifestações de fé à sua figura é polêmico, provocativo e difícil. Há muitas ideias para organizar, no que o carnavalesco Sandro Gomes teve muito sucesso.

Entre os compositores, a possível motivação pela fé não levou a um samba evasivo. Pelo contrário, a obra de Bola (único autor, caso raro ultimamente) é das melhores dos anos 2000. Descreve o enredo com bom gosto na escolha de cada palavra. É o que faz a diferença entre um samba adequado ao enredo e um grande samba-enredo. Reparem em como a primeira parte nos situa na biografia de Jorge de maneira envolvente. Ao falar de Roma, há maior tensão na melodia, efeito fantástico. As rimas internas (que não ocorrem somente entre palavras finais de versos - grifei na letra abaixo) são deliciosas. A segunda parte passeia pelas variedades de cultos sem apelar a recursos manjados. A melodia sai do tom menor predominante e vai para maior, com uma leveza crescente, adequadíssima ao conteúdo da letra. É encerrada por versos que, mesmo não sendo corinthiano, não tem como não reconhecer a genialidade: "quem é fiel é da guerra / é Corinthians na Terra e Jorge no céu".

O ápice da obra é seu refrão final: "eu te sinto pelo ar / eu te vejo no luar". Qualquer comentário será vazio depois disso. Leia e ouça o samba. Salve Jorge!

Gravação oficial:


Áudio do desfile:

O intrépido santo guerreiro
(Bola)


Jorge era um bravo guerreiro
Que enfrentou batalhas sem nunca temer
E com seu talento natural
Chega ao comando da guarda imperial
Roma que em tempos distantes
Punia os amantes da religião cristã
Via o soldado convertido
Apesar de perseguido, confirmar a sua fé
Diocleciano, imperador romano
Ordenou a sua execução
Se espalhou um culto em sua devoção

Não chore, alteza! Não chore, não!
O cavaleiro matou o dragão
Santo guerreiro de coração
Canta o Império em louvação


E ao chegar no Brasil
Com o sincretismo no tempo da escravidão
Foi batizado de Ogum
É fogo, é ferro, é graça para cada um
Ele é quem vence a demanda
Seja na umbanda ou no candomblé
Se hoje tem cavalhada
Amanhã tem congada pro santo de fé
Quem é fiel é da guerra
É Corinthians na Terra e Jorge no céu

Eu te sinto pelo ar
Eu te vejo no luar
O Morro da Formiga em procissão
Faz a sua homenagem ao santo de devoção

2 comentários:

  1. Faltou falar do pseudo-ator e grande diretor Jorge Fernando estragando a imagem de são jorge no desfile, hehe.

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  2. parabéns Willian! Tava na hora de vc escrever... gostei muito do tópico da Maria Antonieta e este samba é ótimo... parabén s e sucesso.

    fred inspiração

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